domingo, 22 de junho de 2014

Alfazema





Que vício este de nos sentarmos nas escadas quando há sol. Colocamos chapéus na cabeça, e conversamos. Falamos dos pássaros e dos ramos nus da alfazema nos grandes vasos da entrada. Recordamo-nos. Sempre dissemos que foi a alfazema que nos uniu, esse aroma fugaz sempre que passavas à minha porta. A atração pelo cheiro num misto inocente e imaginativo de odor de mulher e de natureza. Depois, realizado o desejo, a intimidade das arcas do enxoval de noiva, e ainda agora, nas gavetas e nos livros do pequeno canto que chamamos de biblioteca. Sorrimo-nos. Olhamo-nos. Olhos nos olhos e a lembrança dos beijos e do sexo fugido em lençóis brancos envoltos dos nossos odores amassados, espremidos à mistura com a essência suave desses molhinhos azuis de espigas fragantes. O corpo a envelhecer e o mesmo cheiro de sempre. Que vício este de nos sentarmos nas escadas quando há sol. 


mz



imagem: fotografia do blogue, Diário de Lisboa
The Lisbon Diary, "muito muito", Lx Factory

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Santo António em Lisboa





É de ti Lisboa porque és festa, que te escrevo.
Num olhar, um céu de pombas de asas ágeis, estonteadas, espantaram-se. Foram os sinos. É meio-dia e as noivas já casadas. É a fé. É a crença. É a festa.
Descem estreitas as ruas e as escadas, vasos de sardinheiras encarnadas. E as pombas novas, espantadas, poisam agora nos telhados, sossegadas. Das varandas, no ferro forjado, o crepe colorido, entrançados lado a lado, desgarrados, pregões ao Santo, que é lembrado. Torna-se aldeia, a cidade. Um largo em cada bairro, e a noite. No palato, a sangria e tudo se esquece. O cravo no majerico, o bailarico, a concertina de playback, o arco, o balão e tudo fica. Tudo permanece. Na brasa, a sardinha já foi prata, e depois, a alquimia, milagre que a torna dourada. Na broa, o pingo, e tudo fica até ser dia, ainda que amanhã não seja domingo. 

mz




imagem: mz
Disparos à Toa

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A queda de um pássaro







De asa ao peito foi louco, tão louco. Riscos e mais riscos, no azul, no cinzento. Nevoeiro. Ensinou, arrebatou. Voou mais alto, tão alto. Viveu. Agora brando, um pio de pássaro triste, asa frágil, voo raso. Perfeito início de morte. Sem grito. Bravura. Disfarce.


mz


Imagem: Ota janeček
pesquisa google