quarta-feira, 30 de outubro de 2013

As minhas velhas tias.



  
 As minhas tias fazem das rugas e das caixinhas de comprimidos, vincos e acessórios assumidos. A caminho dos oitenta, coradas de alegria agitam os colares e fazem esvoaçar lenços e saquinhos de crochet.
 O almoço com as tias passou a ser prazenteiro e o que há anos parecia entediado, tem hoje um sopro gaiteiro. Elas já viveram tanto que os pudores não lhes é entrave nas conversas nem nos adornos. As que já são viúvas gostam de unhas garridas, de roupas floridas e falam da vida. Dos filhos e dos netos, dos saudosos maridos e dos primeiros namorados. Uma amálgama de episódios respeitosos muitos repetidos em quase todos os encontros, mas sempre diferentes quando lhes acrescentam uma pitada secreta.
 - Grandes marotas!
 E brincam com as ainda casadas, sondando-as e espicaçando-as galhofeiras e gozosas. Se uma manifesta conversa de missa, logo outra, uma anedota maliciosa ou libidinosa, tornando as prosas num embriagante shaker sacro- profano de riso desmedido. E comem de tudo como se fosse dia de festa e eu, debicando uma fatia de bolo delicio-me com este e com elas que quando se juntam deslembram a idade.


mz


Imagem: Fernando Botero
Pintor e escultor Colombiano - Ocaiw

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Embriagado




A noite consegue vê-los, incógnitos e embriagados. Homens desembestados. Atiram-se à rua, estonteados e loucos, caldeando as entranhas de álcool. Agitam frenéticos a bebedeira. A noite vê passos de homem ziguezagueando a escuridão. Calça sapatos trôpegos que insistem pontapear paralelos de granito. Tem pecado na voz. Pragueja culpando a estrada da dor e do estorvo de uns pés carregados de tantos copos tomados. Vocifera. Rude e abrutalhado, serpenteia uma mulher na penumbra. A noite decifra, uma tela turva, um jogo de sombras a quatro mãos. Vencem as mais fortes, as que dilaceraram a carne e amputam a alma.







Mz

Original escrito e publicado para:
2012 Palavras 2012 Autores
(Desafio ainda a decorrer)


  “Escolha uma palavra e escreva sobre ela (máximo 300 palavras). Deixe a sua marca num dicionário escrito por 2012 pessoas.”

 Pedro Chagas Freitas 







Imagem: Lyonel Feininger, The White Man, 1907
The Best of Surrealism aqui


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Outono enganador





   De pescoço esticado e a cabeça elevada ao céu, um queixume de dor na cervical. Lembra-se de fazer suaves exercícios circulares e vai escutando os estalidos das sete vertebras que lhe sustêm a cabeça. Esquece a dor porque nem vale a pena cismar no que tem de mais certo, agora que as humidades voltam a entrar no corpo. Espreguiça-se como um gato e vai pensando como o Outono é enganador. No intervalo de um escrito e outro, este já foi sol abrasador e já foi vento. Trouxe enredos aos céus que tornaram pardacentos os dias e no infinito chapéu celeste cresceram bigornas gigantescas repletas de vida própria. Arremessaram-nos estes, com raios e trovões e os algerozes tornaram-se riachos a desembocar sem regra. Agora, o céu retrocedeu ao tom azul de Verão e o calor voltou a ser abrasador amadurecendo mais cedo as maças de inverno.
   Ontem, carregou uma dúzia de cabazes dessas, que agora lhe perfumam a despensa escura e fria, são para se ir comendo até depois do natal. Também é por isso que lhe dói a cervical, mas sente-se bem, quando, da dor resultam coisas absolutamente deliciosas. Ainda no seu espreguiçar, volta a elevar a cabeça para a copa de uma árvore e é uma bênção ver a bela e fogosa romã a rebentar descaradamente. 



Mz



Imagem: Tela de Armanda Passos
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