quarta-feira, 25 de abril de 2012

Mise-en-Scène


Também morremos se o pensamento atrofia, por isso, escrevo para afastar um certo medo de definhar. E escrevo um palco de actores vestidos a rigor. Depois, a plateia de pé sem aplaudir e a escorregar cada vez mais num verdete esperançoso. Lembro-me de alguém na banca das flores que diz que já não se gosta de cravos e uma florista a responder que eles nunca fizeram mal a ninguém. É tudo subjetivo ou então, uma forte convicção. Mesmo que não obtenha resposta, interrogo-me de que são feitos os cravos de hoje.
Parece-me ver apenas meia flor. Nos fatos dos actores, bandeirinhas de lata e gravatas verdes. Uma espécie de mise-en-scène. Acaso precisamos que nos lembrem quem somos, ou quem as usa terá necessidade de não se esquecer que são daqui e não de outras bandas?
De facto, nunca o verde esteve tão na moda e não me sai da ideia um certo ambiente clubístico que  dos cravos apenas mostram o caule, falta muito do resto...


imagem: Tela de Gustav Klimt



Original escrito e publicado...
Mz

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Badaladas...



O relógio marca as horas olhando o tempo sempre da mesma forma.
Corre o dia. Corre homem, corre…
Ignoram-me lá, chapado na torre. Mas, quando a noite entra, já longa e sossegada, maldizem-me. Eu. O relógio da torre da capela. Maldizem das horas, das meias e quartos de hora. Na almofada, abafam a estridente lembrança do tempo que desejam demorar. E os sinos?
Os sinos já não tocam como antigamente. O mecanismo dá lugar ao sacristão e os sinos queixam-se. Falta-lhes a macieza das mãos nas cordas coçadas e o badalar já não é o mesmo. As rezas, também já são se fazem ao toque das Ave-maria. Para que servem as diárias badaladas?



Imagem: fotografia neste blogue

Original escrito e publicado...
Mz




sexta-feira, 13 de abril de 2012

Fábula


Dona Coelha sabe que no mundo dos homens e de outros animais, não existe a perfeição dos seres que dele fazem parte. Não são apenas os homens que querem o impossível [não são apenas eles os gananciosos e cobiçadores do alheio]. Entre suspiros e coçadelas suaves no nariz, Dona Coelha sabe que no seu reino também existem animais insatisfeitos.
Lá nas terras do Marquês, seu amigo homem que a deixa à vontade para escarafunchar na sua toca, existe uma rodela de cenoura sagrada onde todos os mamíferos e ovíparos de vários continentes podem sentar-se e falar dos seus problemas.

Um dia, apareceu um bicho de outros solos. Um animal do deserto sedento de ser outras coisas que não lhe assentavam bem. Um esperto Suricata que, apesar de possuir bastantes capacidades, sempre se sentiu insatisfeito. Não lhe bastara construir um sistema de túneis bastante complicado, nem ser um dos maiores predadores do seu sistema social. O pé na terra não era o suficiente. Decidiu então, aprender a voar como os pássaros. Descobriu muito sobre aerodinâmica e, até rapou o pelo da cabeça para melhorar a sua performance de voo somando alguns resultados positivos.

Instruiu o filhote com a mesma técnica predadora e gananciosa de estar no reino. Ambos construíram um sistema ainda mais complicado e, para além dos túneis, e das presas, passaram a complicar também os caminhos dos céus.Estudavam métodos que iriam impor ordens a todos os animais que fossem dotados de asas. Quanto mais complicado fosse o sistema, mais poderosos e mais fortes se tornariam. Objetivo final; deixar a passarada descontrolada e, daí ao poder absoluto dos céus, era um passo.

Contudo, depois de uma viagem a Angola, uma forte depressão apoderou-se do bravo e astuto Suricata. Esqueceu os céus e, a terra vermelha passou a ser o seu chão sagrado palmilhando-a cego de paixão atrás de uma espécie altiva e exótica morena. Cansado e desprezado, abeirou-se de um charco que sem querer lhe devolveu a sua figurinha esborratada de água e lama. Deu um salto de susto e revoltou-se com a sua pequenez. Caiu em si quando se apercebeu finalmente que era um bicho pequeno e que nunca conseguiria crescer o suficiente para satisfazer o cio tamanho que lhe causara aquela gigante nativa mascarada. Não havia solução. Definhou.

Assim, às terras verdejantes e férteis do Marquês, chegou esta história vivida e contada por uma réstia daquele ser expedito que procura agora errante, a cura para o seu mal. E nesta toca, rogou por placidez e complacência. Dona Coelha pediu silêncio e, à volta da rodela de cenoura sagrada, falou o Suricata da sua desarmonia e do seu amor impossível. A incontrolável e louca paixão que deixou naquela planície árida - a sua Palanca Negra de Angola.




Imagem: Tela PAULA REGO


Original, escrito e publicado...
Mz

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Enigmática...


Tenho uma revista e um jornal que li o suficiente. Não me apetece olhar a paisagem vertiginosa e fugidia arrastando árvores e outras coisas. Sintonizei a música. É melhor que os outros ruídos. Cai-me o olhar quase adormecido para a mulher que se senta uns lugares à minha direita. Viajo.

A mulher da carruagem número um, classe conforto do Alfa Pendular, não deveria estar aqui.O seu perfil pertence algures ao passado. Enigmática. Pele branca bem cuidada, olhos enormes com pálpebras descaídas, sobrancelhas arqueadas pintadas de preto. Cabelo loiro curto e franja de ondas largas. Na boca vermelho forte, um sorriso repuxado permanentemente artificial. Uma expressão indefinida, sem se perceber se é natural ou do desenho da maquilhagem. Veste um fato calça e casaco cor de tabaco e uma blusa de seda marfim. Do pescoço flácido de pele rendilhada, cai-lhe um colar de pérolas básico. Mexe e escrevinha em folhas de uma pasta. De vez em quando, fuma uma cigarrilha electrónica de acordo com as regras desta época e nem por isso o sorriso se desmancha. Agora, um raio de sol ilumina-a e a pose é interessante.

Toda ela é um quadro vintage. Uma viagem no Expresso do Oriente num filme com Poirot tentado a desvendar o seu sorriso de Gioconda velha.


imagem:Tela de Tamara De Lempicka
Tema: Rostos


Original, escrito e publicado...
Mz

domingo, 1 de abril de 2012

Caixinha de música...



 Clássica e serena a tua música.
Delicada a caixinha
Onde te escondes,
 Bailarina.
 Ilusória a tua vida
Parada
 No tempo.
Abre a tua caixa,
Bailarina.
Acorda,
Sai e vê.
Destruturação,
Gritos sociais
Povo Inquieto.
E tu
Em pontas,
Rodopias
Leve como sempre.
Rodas, rodas…
Sobre ti mesma.
Nada se passa,
Bailarina.



Original, escrito e publicado...

Mz



(imagem: Pintor e escultor francês, Edgar Degas)